domingo, 5 de dezembro de 2010

De riso, túneis e lágrimas

Por Bruno Siqueira

“Um projeto voltado diretamente ao entretenimento com qualidade, sem o riso fácil, nem muito menos o palavrão descontextualizado”. Essa proposta faz parte do programa de Solteira, Casada, Viúva, Divorciada, com direção de Aluízio Guimarães Filho, e marca o posicionamento ideológico de toda a equipe envolvida na montagem do espetáculo, que abriu a IV Mostra Capiba de Teatro no Sesc Casa Amarela.

Apesar da vaguidade da expressão “entretenimento com qualidade”, presumo, pelo argumento, que a equipe responsável pela montagem se posiciona contrariamente ao “riso fácil” e ao “palavrão descontextualizado” que se alastra nos palcos nacionais. Confesso que não tenho nada contra a nem uma nem outra dessas tendências. Cada projeto estético tem seu espaço na cultura e sempre haverá um público que dele vai usufruir.

Mas não é bem isso que pretendo focar neste comentário crítico. Meu objetivo é refletir, modestamente, sobre o que propõe o projeto de montagem e quais são os resultados estéticos que o espetáculo alcança.

Os quatro esquetes versam sobre o drama íntimo de quatro mulheres, vividas no palco pela atriz Maria Alves. O drama de cada uma, no entanto, é expresso na linguagem da comédia. Daí compreendermos melhor o “entretenimento com qualidade” que a peça nos oferece. Uma comédia herdeira do besteirol, mas que, como filha pródiga, se distancia de sua origem precedente e restabelece os laços com a comédia clássica.

O escritor argentino Julio Cortázar, no seu clássico Rayuela (traduzido para o português com o título O Jogo da amarelinha), considerou que uma pessoa pode rir e pensar que não está falando a sério, mas sim, está falando a sério, pois o riso, só por si, já cavou mais túneis úteis do que todas as lágrimas da terra... Parece ser bem esse o caso de Solteira, Casada, Viúva, Divorciada. O riso foi a linguagem escolhida para abordar o tema da solidão, presente na vida de Vilma, Do Carmo, Celeste Aída e Catarina Fields, as quatro heroínas (decadentes) do espetáculo. Poética e dolorosa é a constatação de Vilma, de que seu lar é “uma verdadeira natureza morta em 3 dimensões”.

Como toda boa peça, Solteira, Casada, Viúva, Divorciada se presta a várias leituras. Além da solidão existencial sustentada por qualquer ser humano, o texto abre espaço para uma discussão sobre gênero. Em todos os quatro esquetes paira uma reflexão sobre o feminino e o masculino. Claro que o feminino está em foco, mas a constituição de gênero, compreendida como valores sociais impostos sobre as diferenças biológicas entre os sexos, só se efetiva na relação entre o masculino e o feminino.

Sendo assim, as condições sociais da mulher em nossa sociedade estão intimamente ligadas à forma como essa mulher se relaciona com o homem, o que vem pondo em crise a estrutura caquética da instituição burguesa do casamento. Sobre isso, é exemplar, por exemplo, a tomada de consciência de Do Carmo, viúva que descobre no velório do marido ter sido traída a vida inteira, enquanto ela representava o papel de toda mulher “de família”: dona de casa, mãe, privada de vida social e até do ensino básico, já que o esposo não permitiu que ela continuasse seus estudos colegiais. Para os mais moderninhos, esse tipo de mulher faz parte de um passado longínquo, mas o que eles não atentam é o fato de que ainda há muitas mulheres que ainda se submetem a esse jogo patriarcalista do casamento burguês.

Se o cômico se faz presente em cada letra dos quatro esquetes, como o diretor o concebe para o palco? Conforme declara no programa do espetáculo, ele procurou fundamentar teoricamente a construção das personagens a partir do pensamento de Stanislavski, numa perspectiva mais contemporânea. Significativo foi o depoimento da atriz Maria Alves no debate que se instaurou após a apresentação do espetáculo. Oriunda de um teatro de gestos largos, de intensa expressividade – o chamado ‘teatrão’ –, ela confessou o quão difícil foi assimilar no corpo as propostas naturalistas do autor russo, que enfatiza o realismo dos pequenos gestos.

O resultado estético dessa tensão nos mostrou que, apesar de Maria Alves ter conseguido podar significativamente seus gestos, não alcançou a proposta stanislavskiana na construção de suas personagens, conforme o intento do diretor e encenador do espetáculo. Faltou-lhe a leveza e a naturalidade dos pequenos gestos, sobretudo quando a atriz se liberta das tensões nas primeiras cenas e vive intensamente suas personagens.

Certamente, é difícil conceber um sistema de pensamento realista sobre o teatro quando se trata de um trabalho com monólogos, uma modalidade dramática absolutamente antirrealista. No entanto, isso não constitui necessariamente um ônus para o espetáculo. Os princípios stanislavskianos podem ser seguidos, como já previa o próprio autor russo, em qualquer outro tipo de teatro que não seja exatamente o realista.

É justamente no momento em que a atriz relaxa e passa a equacionar a proposta da direção com seu longo aprendizado de teatro que o espetáculo ganha mais brilho e consegue arrancar da plateia gargalhadas sinceras. Isso acontece, sobretudo, a partir do segundo esquete. Mas é no terceiro, quando Maria Alves vivencia a psicopata Celeste Aída, que o gênio da atriz se mostra no seu maior esplendor. A riqueza poética do texto (a meu ver, o melhor dos quatro esquetes) contribuiu para que Maria Alves expressasse seus melhores dotes de atriz.

Quanto à concepção cênica, vale menção, também, o diálogo entre as duas linguagens: a teatral e a cinematográfica. Cada esquete é introduzido e seguido por imagens em vídeo projetadas num telão, que trazem as mesmas personagens e as mesmas situações focadas nos episódios. Certamente não se trata de um procedimento estético novo. Nem com isso o diretor está preocupado. O que vale a menção é a qualidade estética do vídeo produzido e o diálogo ajustado entre as duas linguagens em questão.

A meu ver, o saldo geral do espetáculo foi muito satisfatório para os propósitos definidos. Isso justifica o sucesso que a peça vem alcançando em diversos municípios do estado de Pernambuco e que alcançou na noite de abertura da IV Mostra Capiba de Teatro. Que a equipe siga oferecendo diversão e momentos de reflexão aos públicos que ainda estão por vir.

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Sobre o Crítico...

Bruno Siqueira

Doutor em Literatura Dramática e professor do curso de Artes Cênicas da UFPE. É crítico teatral, tendo participado como colaborador efetivo do Portal TeatroPE nos anos de 2007 e 2008. Colaborou com o Diário de Pernambuco, com a publicação de alguns textos de crítica teatral. Tem artigos críticos publicados em revistas e livros acadêmicos.

Um comentário:

  1. Agradeço as lapidadas palavras. Gostaria muito está presente, para que pudéssemos conversar sobre este espetáculo e sobre teatro, porém, infelizmente, não foi possível desta vez.

    Atenciosamente,

    Aluizio Guimarães
    (Diretor de SCVD)

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