Por Bruno Siqueira
É possível que algumas pessoas modernosas me achem antiquado no que vou dizer. Mas ainda sou daqueles para quem não existe teatro sem um bom ator ou uma boa atriz! O texto pode ser ruim, a encenação frágil, mas quando há um bom ator podemos sair do teatro encantados. Tá, ok, podem me questionar: mas qual é sua concepção de ator? Vou dar um exemplo: Augusta Ferraz, 37 anos de palco, intérprete única do espetáculo Guiomar – A Filha da Mãe, o qual foi apresentado na IV Mostra Capiba de Teatro.
Com dramaturgia cênica de Moncho Rodrigues, Guiomar... estreou em 2003 e, de lá para cá, vem sofrendo inúmeras adaptações. Inicialmente com dois atores, a montagem chega aos dias de hoje contando unicamente com a atriz, que também assina a direção do espetáculo. O texto de Lourdes Ramalho, consequentemente, também teve de passar por cortes e adaptações.
Guiomar é filha de outra Guiomar, que também era professora. Já velha, perde a casa que adquirira com tanto sacrifício. Privada de lar e de poder aquisitivo, passa a viver nas ruas do mundo carregando sua carroça, que também faz as vezes de casa.
O espetáculo é materialmente simples. A grande riqueza está no material humano. Não falo aqui, especificamente, das personagens do texto, que são riquíssimas, nem do próprio texto, que tem inegável valor social e político. Quero me ater ao material humano que é a própria atriz.
Certamente há inúmeras concepções de ator, mas a maioria converge para um ponto: o ator é aquele que cataliza todas as atenções pela verdade de sua atuação, a qual se dá pela expressão viva do corpo, da voz, dos movimentos, e por saber ajustar tudo isso, com coerência, à proposta da cena.
Augusta Ferraz se transfigura genuinamente na velha Guiomar, que está no limiar entre a sanidade e a loucura. Para que a poesia e a loucura da personagem saíssem do palco e atingissem em cheio a plateia, a atriz se apoia numa técnica segura e rigorosa, certamente assimilada ao longo de sua trajetória profissional. Augusta se vale de seu próprio corpo, instrumento de trabalho, para contar a história de sua personagem, criando uma composição em que se mesclam o cômico e o dramático.
A atriz tem domínio de canto, excelente dicção, imprime ao seu corpo, da ponta dos pés à cabeça, uma energia motivada. Nenhuma parte do corpo está destituída de vida. Todo ele pulsa e faz pulsar. A contenção faz parte do processo de estilização. O corpo da atriz vibra, sem precisar recorrer ao excesso e ao extravagante. Todos os gestos são calculados e fluem numa poesia candente, compondo uma verdadeira partitura corporal.
As máscaras que a atriz compõe são um caso à parte. Diz-se, em termos bem coloquiais e chistosos, que Fernanda Montenegro tem uma “cara feita de borracha”, ou seja, pode-se moldá-la a partir de qualquer comando. Podemos também dizer isso de Augusta Ferraz. Todo o seu rosto é expressivo: olhos (impressionante o que ela faz com eles!), boca, bochechas, testa, maxilar.
A atriz também canta em cena, a exemplo dos menestréis da Idade Média; são canções que remetem a vários períodos de nossa história nacional. Sua voz é afinada e seu timbre é suave, acalantando os espectadores que se encontravam no Teatro Capiba.
O espetáculo é um mimo, de extrema poesia e delicadeza. Seu ritmo é muito bem afinado, não cansando, portanto, a plateia. A atriz possui um carisma louvável. Para citar um exemplo, geralmente ao término dos espetáculos nessa IV Mostra Capiba de Teatro Nacional, abre-se espaço para um debate, ao qual ficam presentes poucas pessoas da plateia que assiste aos espetáculos. Com Guiomar... aconteceu o contrário. O teatro estava relativamente cheio e quase todo o público ficou, após a apresentação, para ouvir a atriz e lançar-lhe perguntas.
Augusta não é só uma atriz pernambucana. Ela é A atriz. A meu ver, a melhor das que estão vivas e atuantes em nosso estado.
Sobre o Crítico...
Bruno Siqueira
Doutor em Literatura Dramática e professor do curso de Artes Cênicas da UFPE. É crítico teatral, tendo participado como colaborador efetivo do Portal TeatroPE nos anos de 2007 e 2008. Colaborou com o Diário de Pernambuco, com a publicação de alguns textos de crítica teatral. Tem artigos críticos publicados em revistas e livros acadêmicos.
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