segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Do prazer estético ao riso desbragado: um manual prático de felicidade

Por Bruno Siqueira

A segunda peça apresentada na IV Mostra Capiba de Teatro, Manual Prático de Felicidade, da Teodora Lins e Silva Cia. de Teatro, continua apostando no gênero comédia. Dessa vez, o texto de Luiz de Lima Navarro e a encenação de Williams Sant’Anna bebem nas fontes da farsa, espécie dramática de cariz profundamente popular.

Como toda farsa, o jogo de cena e a versatilidade dos atores, Alcy Saavedra e Sonia Christnak, se sobrepõem aos recursos propriamente literários do texto. Navarro já tem um considerável percurso na escrita de besteirois e a sua qualidade está menos na elaboração literária dos textos do que na compreensão dos recursos dramáticos da cena que ele assimila muito bem em suas peças. Não são textos grandiosos, monumentos literários a serem transpostos para o palco. Geralmente os temas são irrisórios. Mas tem o autor — que também é ator — o mérito de imprimir em seus textos o tom e o ritmo exato da comédia, do cômico, do que gera o riso.

No Manual Prático de Felicidade, Navarro cria uma personagem, Gina, com tonalidades mais delicadas e reflexivas, o que, de certa forma, foge à sua dramaturgia habitual. Trata-se de uma personagem que, sobre seu cotidiano dessaboroso, cria uma realidade virtual, um universo particular, como forma de fugir às dificuldades constantes em sua vida.

A partir desse mote, a encenação aposta no jogo entre realidade e virtualidade. O espetáculo começa com os atores vestidos numa malha, aquecendo-se diante do público. A partir de então, passam a desenvolver o jogo cênico, revezando, entre si, cinco personagens: Gina, sua prima, o esposo e seus dois filhos. Enquanto estão fora do palco, são os atores; quando sobem ao palco, assumem as características típicas de suas personagens. Não bastasse isso, sobre a realidade da ficção se assenta outra ficção, dessa vez criada pela protagonista, Gina.

O cenário de Sant’Anna é deliberadamente irreal: uma cozinha sobre uma lona com o desenho de um globo, num propósito explícito de simbolizar que a situação exposta no palco é por demais humana e pode estar localizada em qualquer ponto do planeta. Os objetos de cozinha são armações com telas grafitadas, simulando paredes, móveis e eletrodomésticos reais.

O jogo entre o real e o virtual é também reforçado pela iluminação, que joga com a luz branca para indicar o cotidiano das personagens e com matizes alaranjados e violetas para simbolizar os movimentos emocionais da protagonista.

Uma marca estilística do encenador são as brincadeiras metalinguísticas, que, na cena, problematizam a relação entre o real do teatro e o virtual da ficção. Para citar dois exemplos, quando uma personagem pede uma luz (uma ideia), a outra estala os dedos, de forma que uma luz branca se acende no palco; ou quando uma personagem dialoga com um pote de aveia Quaker e pede ao desenho que pisque um dos olhos para dizer se concorda com o que estava sendo dito: consequentemente, uma luz pisca no palco, ao som de um estalido.

Mas tudo isso resultaria em formalismo estéril se não fosse o apuro técnico dos dois atores. Ressalte-se que Alcy Saavedra e Sonia Christnak não dispõem de um vasto currículo de atuações em teatro. Mas o talento de ambos vem se evidenciando desde seus trabalhos em Um piano à luz da lua (2003) e em Lição de botânica (2006). Com Manual Prático de Felicidade, eles aprofundam ainda mais o exercício de ator.

Acreditando que o ator tem de ser plural, eles pesquisaram a linguagem da farsa e vivenciaram diversas personagens que se cruzam no palco, num ritmo e num timing surpreendentes, provocando na plateia gargalhadas descontroladas. Vale menção honrosa a cena em que Saavedra entra no palco com uma peruca loura e um vestido longo alaranjado, representando a prima de Gina — na verdade, uma projeção da mente da protagonista. O ator dança, rebola, usa os tempos exatos da fala e faz caras e bocas próprias da cena farsesca.

Manual Prático de Felicidade consiste numa comédia simples (sem ser simplória), despretensiosa, que convida ao riso desbragado e nos faz pensar em nossas próprias fragilidades enquanto seres humanos. Parabéns à equipe responsável pela montagem!

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Sobre o Crítico...

Bruno Siqueira

Doutor em Literatura Dramática e professor do curso de Artes Cênicas da UFPE. É crítico teatral, tendo participado como colaborador efetivo do Portal TeatroPE nos anos de 2007 e 2008. Colaborou com o Diário de Pernambuco, com a publicação de alguns textos de crítica teatral. Tem artigos críticos publicados em revistas e livros acadêmicos.

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