segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O Desejo de Jogar

Por Wellington Júnior

“Cicerones dessa região de infindos mistérios,

os narradores/donos de história/dramaturgos por essência

desconhecem a inflexibilidade, senão aquela que inventam,

como uma ilusão para desafiar a si mesmos ou dar colorido as suas histórias –

limites lhe são ferramentas, jamais a alma do que criam.

Não é a toa que o cronotopo referente a esse lugar-que-não-é-lugar em um

tempo-que-não-é-tempo tenha recebido

o nome de jogo do ilimitado.

Esta é uma denominação adequada à própria arte teatral.”

Luiz Felipe Botelho


A Teodora Lins e Silva Companhia de Teatro é um grupo muito importante na cena teatral pernambucana contemporânea, já tendo produzido três espetáculos: O piano à luz da lua, Lição de botânica e Manual prático de felicidade.

Os dois primeiros trabalhos contaram com a direção de Roberto Lúcio e o último foi dirigido por Williams Sant´anna. Identifico na pesquisa estética do grupo uma forte tendência em realizar um diálogo entre a tradição teatral e a cena contemporânea.

Este ideário é muito marcado nos conceitos de teatralidades operados pelos seus produtos estéticos. E compreendo aqui o conceito de teatralidades como sendo os discursos cênicos propostos pelos trabalhos realizados, através dos diálogos entre texto e cena.

Na sua trajetória, a Teodora partiu de uma teatralidade denegada (que está ancorada numa figuração naturalista e dos “efeitos do real”) e chega a uma teatralidade da convenção (que tem por base o desvelamento dos procedimentos criativos, através do puro jogo).

O espetáculo Manual prático de felicidade está completamente envolvido nesta teatralidade da convenção. A dramaturgia de Luiz de Lima Navarro – um excelente comediógrafo contemporâneo – é muito decisiva para a instalação desse grande jogo teatral proposto pelo grupo. Navarro é um autor que escreve para a cena, a história da peça é um mero pretexto para se estabelecer o mais importante em sua estética autoral que é a busca por uma série de golpes teatrais, reviravoltas, entradas e saídas de personagens, que sempre surpreendem o espectador.

Ao lado da escrita navarriana, temos outro discurso cênico, que é o do importante encenador Williams Sant´anna. Neste espetáculo, a relação entre texto e cena é de complementaridade e de diferença. As encenações de Williams são marcadas pelo desejo de desmascaramento do teatro. Em Manual prático, essa operação de jogo está presentificada no processo de mostrar em cena a arquitetura dramatúrgica, estabelecendo o tempo inteiro um diálogo com o espectador, afirmando que ali é puro teatro.

Mas é no jogo com os atores que esta teatralidade da convenção se impõe com sua instância máxima. Alcy Saavedra e Sônia Christinak conduzem o trabalho atorial com muito maestria e consciência plena de tudo. Christinak opta por uma sutileza no desvelamento de suas personagens, enquanto que Saavedra desenha seu traçado mais marcado, talvez até mais teatral, o que é muito bom para afirmar a presença deste tipo de teatralidade espetacular.

Este conceito que está amplamente presente no conjunto da encenação sofre alguns abalos na trajetória da cena, quando a necessidade de informação da trama (os temas como camisinha, drogas, entre outros) tenta se impor sobre a pura necessidade do jogo. Mas são poucos os instantes dessas invasões o que não fere a construção do projeto estético do espetáculo.

Observando o percurso da Teodora Lins e Silva e o espetáculo Manual prático de felicidade, vejo o quanto a necessidade de jogar é importante para esse grupo. Mesmo praticamente sem apoio do poder público, continuam produzindo seus trabalhos e os realizando com muita verdade. Intuo que seja esse estranho desejo de jogar que impulsiona todos nós a continuarmos acreditando que o teatro é o espaço ideal de troca, do infinito poema do humano, do simples e complexo jogar. Play to play.

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Sobre o crítico...

Wellington Junior

Diretor e ator de teatro, foi Professor do curso Regular de Teatro Sesc Santo Amaro (2001-2005), dos cursos livres do Sesc Piedade (2001-2005). Participou da Curadoria do VIII Festival Recife de Teatro Nacional (2005); Seminário de Critica Teatral (2005,2006 e 2010). Colaborador durante os anos de 2007 e 2008 no Portal TeatroPE. Em 2006 e 2007 foi Coordenador Pedagógico do Festival Todos Verão Teatro, realizado pela Federação de Teatro de Pernambuco.

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