terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A falência da crítica

Por Bruno Siqueira

Crítica sem rumo. A última obra do grupo Magiluth, Um Torto, constitui um problema para a crítica. Não falo só da crítica como instituição, como a que escrevo agora, mas também ao senso crítico do público que, a despeito das variadas apreciações (“um tédio”, “uma “obra-prima”, “um vazio absoluto”), tende a caminhar para um só ponto: a perplexidade.

O crítico costuma ser, para usar de uma das metáforas do Conde de Lautréamont, “uma espécie de vampiro [um piolho] que suga o sangue do criador para nutrir as veias de seu discurso paralelo”. A inclinação da crítica pende para a contemplação, para o juízo estético, para o diálogo em busca da interpretação, do(s) sentido(s).

Como fazer isso, sem o risco de incorrer no reducionismo, diante de espetáculos como The Flash and Crash Days, de Thomas? Talvez seja mais possível no caso de Raptada pelo Raio, de Forjaz. Mas e o caso de Corte Seco, de Christianne Jatahy? Para não falar das performances de Yoko Ono, como Cut Piece, apresentada no Carnegie Hall, Nova York, em 1965 (vale a pena conferir no youtube).

Isso para mostrar que Um Torto não é uma criação genesíaca. Trata-se de um espetáculo que faz parte de uma tradição de arte contemporânea que põe os explicadores (exegetas, como gostam de dizer na academia) em desordem e expulsa sumariamente os juízes de carteirinha. Mais uma vez me referindo a Lautréamont, pomos dizer, como faz o poeta quando se dirige aos críticos, que o grupo Magiluth também nos grita: “Arranjem-se!”.

Bom, me arranjarei. Como toda performance, o espetáculo conta com a participação direta do público, que é estimulado, desde o início, a sugerir a construção do espaço da encenação. Não se trata de uma exortação agressiva, e CHATA, como muitos dos espetáculos da década de 1960 e de 1970 que ainda fazem eco em algumas produções artísticas contemporâneas. O público não se sente constrangido por Giordano Castro, o performer/ator que se encontra em cena.

Aliás, essa experiência direta com o público é um dos pontos altos do espetáculo, o qual foge a rótulos classificatórios (“gênero nenhum me pega mais”, já dizia Clarice). O próprio Giordano, no debate que se instaurou após o espetáculo, confessou que, pego de surpresa quando um teatro lhe perguntou sobre o gênero da peça, respondeu de súbito: reality show. Trata-se de uma metáfora, claro, afinal a peça se filia à performance, gênero híbrido que termina sendo coisa nenhuma, senão experiência, vivência (será que já estou me comportando como o tal piolho maldororiano?).

Um tipo de espetáculo que conta com a colaboração do público para desenhar o espaço cênico e construir a dramaturgia (que é “falha” e “fraca”, no dizer do performer) continua sendo um desafio para os artistas envolvidos. E o grupo é ciente disso. E o grupo QUER isso. Tudo pode acontecer. Resta saber como controlar a situação quando ela foge do controle.

Como um reality show, o público pensa estar livre para ser o coautor do espetáculo, mas é a produção que, em última instância, controla essa reação. É o domínio e desembaraço de Giordano Castro; são as operações de luz e de som que induzem a direção das cenas. Mesmo assim, o jogo estabelecido abre brechas para qualquer tipo de extrapolação por parte da plateia. São os riscos que o grupo aceitou assumir. Afinal, esta é a proposta do espetáculo.

Uma última palavra, por ora. A dramaturgia do texto, assumidamente fragmentada, reflete o processo de construção da própria dramaturgia cênica. Primeiramente, o texto é aberto, à espera, inclusive, da colaboração do público. Em segundo lugar, pelo depoimento do grupo, o texto de base foi chegando aos pedaços, montado em cena como um mosaico. O experimento não seguiu nenhuma ordenação lógica dos tradicionais manuais de dramaturgia. Nem poderia, senão o projeto iria escoar pelo ralo.

Foi a intuição puramente estética (pré-lógica) do grupo que norteou a criação desse mosaico de poesias, partituras sonoras e corporais, confissões, citações, canções e outros tantos ‘ões’. E o resultado constituiu uma espécie de móbile, uma estrutura que muda de posição e de ordenamento a cada apresentação. A sensação, porém, permanece a mesma — daí a dimensão “humana, demasiadamente humana” do espetáculo: estamos diante de um torto, de um homem torto, de um homem tentando, de um homem que sente, que pulsa, que convulsiona. De um ator empesteado.

Fora isso, ficam as palavras de David Bowie: There's a starman waiting in the Sky/ He'd like to come and meet us/ But he thinks he'd blow our minds/ There's a starman waiting in the sky/ He's told us not to blow it/ Cause he knows it's all worthwhile/ He told me:/ Let the children lose it/ Let the children use it/ Let all the children boogie (Há um homem das estrelas esperando no céu/ Ele gostaria de vir e encontrar-nos/ Mas ele pensa que explodirá nossas mentes/ Há um homem das estrelas esperando no céu/ Ele disse para não explodirmos/ Porque ele sabe que tudo vale a pena/ Ele disse-me:/ Deixem as crianças perderem o controle/ Deixem as crianças aproveitarem/ Deixem todas as crianças tocarem/dançarem).

E eu saí do espetáculo com a música dentro de mim. Só.

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Sobre o Crítico...

Bruno Siqueira

Doutor em Literatura Dramática e professor do curso de Artes Cênicas da UFPE. É crítico teatral, tendo participado como colaborador efetivo do Portal TeatroPE nos anos de 2007 e 2008. Colaborou com o Diário de Pernambuco, com a publicação de alguns textos de crítica teatral. Tem artigos críticos publicados em revistas e livros acadêmicos.

Um comentário:

  1. Bruno...
    estamos praticando com a sua crítica o que fazendo também no espetáculo

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    para o Blog
    grupomagiluth.blogspot.com

    Grande Abraço

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