quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A dramaturgia poética e simbolista da Fiandeiros

Por Bruno Siqueira

No comentário crítico feito ao espetáculo Um Torto, do grupo Magiluth, finalizo que saí do teatro com a música dentro de mim, numa nítida referência a uma fala do performer, segundo a qual lhe faltava, dentro de si, a música. A Cia. Fiandeiros de Teatro, que apresentou O Capataz de Salema na IV Mostra Capiba de Teatro, também recorre à música como elemento estético fundamental para o fenômeno teatral. Melhor ainda, nas palavras de seu idealizador, e diretor do espetáculo em foco, André Filho, há no projeto da companhia uma exploração da musicalidade que o ator/atriz comporta em si mesmo(a) e que leva para a cena.

O Capataz de Salema é o que Joaquim Cardozo (seu autor) chama de “uma conjetura dramática”. A dúvida quanto à classificação do gênero está na própria denominação: conjetura, juízo sem fundamento preciso, suposição, hipótese. Consiste o texto num longo poema dialogado, cuja ação dramática é quase nenhuma, expressando uma imobilidade desconcertante para o drama. No dizer de João Denys, um de seus estudiosos e prefaciador do teatro completo de Joaquim Cardozo, a peça constitui um “épico contemporâneo”, pelo distanciamento que mantém com o dramático estrito.

A poética de Cardozo, rigorosamente arquitetada, traz como argumento central n’O Capataz de Salema a impossibilidade do amor entre o capataz dos pescadores numa praia de Olinda e Luzia, filha de um pescador. Duas outras personagens figuram no texto. Sinhá Ricarda, avó de Luzia, é uma velha que, à maneira das personagens maternas de Lorca, expressa sua mais profunda dor de mãe que perdeu para o mar sua prole de seis filhos varões (“Seis filhos tive, seis flores/ Que sobre o mar espalhei.../ (mais serena)/ Toda mulher é uma várzea/ Onde um carnaval cresceu/ Pobre de mim! Ai de mim!/ No fundo do mais profundo/ Minha safra se perdeu...”).

A outra personagem é o Mar, elemento simbólico que intervém sempre, em momentos determinados, para exprimir rumores e sonoridades “como as de alguém que chorasse ou cantasse um canto alegre ou ninar de meninos, às vezes também rugidos, latidos, rumores de coisas arrastadas, derrubadas, rumor de rolar de dinheiro, de rodas girando muito longe, etc.”.

A encenação de André filho concentra-se no poder evocativo da palavra poética Em sua dramaturgia cênica ecoam as principais características do teatro simbolista: o palco apresenta um drama lírico de solidão e melancolia, cujos elementos não estão ancorados em objetos propriamente “reais”, mas exploram zonas particulares do estado anímico; não há menção a tempo e espaço determinados; palavra, música e partitura corporal agem simultânea e sinestesicamente para evocar disposições íntimas enraizadas no lirismo.

Se essa encenação caminha pari passu com a poética cardoziana, é verdade também que num ponto André Filho se vale de uma licença poética que se distancia das orientações dadas pelo próprio dramaturgo em suas didascálias. Na obra de Cardozo, o Mar é uma personagem que se faz presente apenas pelos ruídos que invadem o palco. Na verdade, sua corporeidade é absolutamente sonora. André Filho materializa a figura do mar, o qual se encontra no plano de fundo da cena, separado do primeiro plano por um tecido de filó. Além disso, o encenador cria, também no plano de fundo, as figuras das três parcas, responsáveis por urdir o fio da vida. Elas formam um coro que fala o texto contido nas didascálias da peça de Cardozo e compõe uma partitura musical a qual, aliada à bela plasticidade do quadro, tende a reforçar o simbolismo da cena. Essa licença, justamente por corroborar os aspectos simbólicos presentes na obra, não constitui, a meu ver, nenhuma perda para a poética da cena, pelo contrário.

Acredito que o coro poderia ser mais trabalhado, pois suas falas soam muitas vezes artificiais. Se o propósito do encenador é criar uma atmosfera irreal/antinaturalista, isso não pode ser confundido com a artificialidade das entonações. O espectador mais atento perde o encantamento da cena para observar fragilidades técnicas na atuação do coro. Ressalte-se, porém, as belas canções e o belo canto da solista, que contribuem para estabelecer as correspondências entre os mundos real e espiritual.

Primorosa está a interpretação de Manuel Carlos, no papel de Sinhá Ricarda. Como ator mais experiente, ele foi o único que conseguiu dosar, com equilíbrio exemplar, o recital poético com a dramaticidade que sua personagem carregava. Foi um trabalho de transubstanciação do ator, que no palco se mostrava como poesia pura. Daniella Travassos também tem um trabalho sensível e coerente com a proposta simbolista da encenação. Jefferson Larbos, porém, a meu ver, é o elemento que está mais desafinado com a proposta cênica. O ator opta por um aprofundamento psicológico e por uma alta dramaticidade, dissonantes com as sugestões simbólicas que a cena requer. Abdicar do realismo e mergulhar nas evocações poéticas da palavra talvez seja um caminho para que se possa manter afinado com a encenação.

Num mundo da velocidade e de ritmos alucinantes que nós vivemos, O Capataz de Salema da Cia. Fiandeiros de Teatro é um contraponto estético e ideológico, destinado aos que se propõem a vivenciar a poesia e os movimentos do espírito, com seu ritmo muito particular. 

--

Sobre o Crítico...

Bruno Siqueira
Doutor em Literatura Dramática e professor do curso de Artes Cênicas da UFPE. É crítico teatral, tendo participado como colaborador efetivo do Portal TeatroPE nos anos de 2007 e 2008. Colaborou com o Diário de Pernambuco, com a publicação de alguns textos de crítica teatral. Tem artigos críticos publicados em revistas e livros acadêmicos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário