segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Quando a Trupe Ensaia Aqui e Acolá lê o melodrama e o circo-teatro

Por Bruno Siqueira

O Amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas fechou com chave de ouro a apresentação de espetáculos na IV Mostra Capiba de Teatro. Em nenhum dos dias houve um público tão numeroso, a ponto de se colocarem cadeiras extras para alguns espectadores se sentarem, enquanto outros ocupavam os balcões do teatro. Isso se deve ao sucesso que vem alcançando a montagem da Trupe Ensaia Aqui e Acolá, com a encenação de Jorge de Paula. Por que todo esse sucesso?

O espetáculo é livremente inspirado no romance do pernambucano Carneiro Vilela, A Emparedada da Rua Nova, escrito entre os anos de 1909 e 1912. A obra de Vilela se baseia num mito muito popular à época, de que, no século XIX, uma jovem burguesa, residente à Rua Nova, teria sido emparedada pelo próprio pai para se salvaguardar a honra da família, pois ele descobre que a filha, solteira, estava grávida. O autor centra seu enredo ficcional no triângulo amoroso que se instaura entre mãe, filha e amante. Ao descobrir o triângulo, o patriarca burguês manda assassinar o amante. A mãe enlouquece e a filha, grávida, recusando-se casar com o primo, é emparedada pelo próprio pai.

A montagem da Trupe Ensaia Aqui e Acolá se vale de alguns poucos elementos dessa história e constrói uma dramaturgia com a estética do melodrama, particularmente do melodrama dos Circos-Teatros. Apesar de todo estigma negativo que recebe da intelectualidade, sabemos que o melodrama é um gênero sério e muito popular. Nascido na Europa, torna-se um traço característico em nossa cultura latina, podendo ser observado, ainda hoje, nos comportamentos humanos, na teledramaturgia, no jornalismo, no cinema, na literatura.

O melodrama expressa uma visão ingênua da realidade. Tudo é interpretado a partir de um ponto de vista maniqueísta: de um lado os bons; de outro, os maus. Esse maniqueísmo revela uma concepção essencialista do ser humano: o homem é essencialmente bom ou essencialmente mau. Ou é mocinho(a) ou é vilão(ã). Ou é bondoso(a) ou é malvado(a). De acordo com essa concepção, não existem nuanças na psicologia humana. Não existem meios termos.

Dessa forma, o bem é sempre perseguido pelo mal, mas o mal deve ser também sempre punido. O melodrama aposta, assim, nas emoções epidérmicas do público. Apela para as lágrimas abundantes. Para a exacerbação dos sentimentos. Quem não reconhece isso em depoimentos de amantes reais que, abandonados pelos seus pares, se põem no lugar da vítima que foi enganada pelo outro, que agiu, por sua vez, de forma “canalha”?

Deve estar na mente de todos ainda (porque também o melodrama é um entretenimento descartável, pouco lembrado depois de usufruído) a novela criada pelo telejornalismo em cima do caso dos mineiros chilenos, soterrados há dois meses, a 700 metros de profundidade. Algumas emissoras transformaram a tragédia real num reality show, fazendo a cobertura integral do sofrimento dos familiares e do resgate, um a um, dos 33 trabalhadores pobres, explorados por um sistema capitalista cruel. A audiência dessas emissoras subiu consideravelmente. Isso só acontece porque nosso povo é ávido de emoções. Gosta de consumir melodramas.

E o que teria o circo a ver com tudo isso? É possível que a nossa geração coca-cola desconheça que, durante o século XX, pequenas companhias mambembes de circo apresentavam números de dramas teatrais, cômicos ou melodramáticos. Essa tradição foi perdendo espaço frente às inúmeras ofertas que a indústria cultural nos proporcionou. Mas nas cidades interioranas ainda é possível assistir a esses dramas circenses, em companhias muito pobres, que se apresentam para um público aberto à diversão popular.

O debate que se estabeleceu ontem, ao término da apresentação dO Amor de Clotilde..., foi um tanto confuso. Conforme depoimento do encenador, houve, em princípio, um desentendimento conceitual na Trupe quanto ao conceito de melodrama. No final das contas, optaram por se valer do que há de mais superficial no melodrama, ou seja, o exagero dos gestos e das emoções, para se aprofundarem na linguagem do circo-teatro. Ok. Logo após, afirmou categoricamente que o espetáculo não buscava o riso fácil, que não queria brincar com os clichês do melodrama, mas pretendia ser os próprios clichês, procurando representar o mais fiel possível o que acontece nos circos-teatros...

Ora, quem assistiu à peça, como eu, há de convir que o resultado traiu os propósitos da Trupe. O espetáculo não é e jamais será o que acontece no circo-teatro. Ele pode fazer, e faz, uma grande homenagem ao circo-teatro e ao melodrama, mas se trata de padrões estéticos diferenciados. Se o grupo pretendesse uma representação a mais fiel possível do circo-teatro e procurasse ser exatamente o clichê do melodrama, teria convidado um artista do próprio circo, justamente daquelas companhias extremamente pobres, para que pudesse fazer a encenação do drama, como sugere Camarotti em sua proposta de trabalho.


Mas não foi isso o que aconteceu. Toda a equipe possui um padrão de vida e um nível de escolaridade diferente do artista popular do circo-teatro. A maioria é constituída por arte-educadores e tem referências e olhares estéticos diferenciados dos que fazem a autêntica arte do circo-teatro. Isso se evidencia pela cenografia limpa e esteticamente equilibrada e pelas inúmeras citações que são postas de forma intelectualizada, mesmo em se tratando de referências populares e, a maioria delas, da cultura de massa. O discurso cênico faz uma leitura crítica dos clichês.

Mas a evidência maior é o olhar crítico e parodístico com que a encenação manipula os clichês do melodrama. Definitivamente, me desculpe Jorge, mas vocês não são o clichê: vocês brincam com o clichê, de forma intelectualizada. A plateia intelectualizada de ontem não riu de vocês, mas riu COM vocês.

Há uma diferença conceitual entre pastiche e paródia. O pastiche corresponde a uma recorrência a um gênero; à busca de uma imitação, grosseira ou perfeita, de um modelo, de um estilo (era isso, pelo que ficou claro ontem, o que vocês pretendiam com o melodrama); a paródia é, grosso modo, a imitação de um modelo, muitas vezes pelo viés do cômico, do riso ou do deboche (foi isso o que vocês mostraram ontem com a encenação). A paródia não deixa de ser uma homenagem ao modelo, mas uma homenagem crítica, sempre.

Para citar um exemplo muito conhecido de você, Jorge, a encenação de Augusta Ferraz da Emparedada da Rua Nova faz um pastiche do melodrama, não uma paródia. Há uma imitação dos clichês, sem o viés crítico do riso. Pelo contrário, a proposta parecia ser uma homenagem ao melodrama, feito de forma “mais séria” possível. Fica claro?

O que vocês fazem com o melodrama está mais próximo da proposta de Enrique Diaz, da Cia. dos Atores, em seu espetáculo Melodrama (1995). Trata-se de uma paródia. E de um puta trabalho de direção e de atores. O diferencial é que a pesquisa da Cia. dos Atores vai pelo caminho do melodrama europeu. E a de vocês, pelo caminho do circo-teatro, uma outra vertente do melodrama, vale salientar. Se vocês foram ver o melodrama in loco, no próprio circo, não significa que assistiram ao “autêntico” melodrama, ao contrário dos estudos intelectuais (Thomasseau, etc), como você pressupôs ontem, Jorge. Esse “autêntico” se perdeu no tempo. O que temos agora são leituras: as de Thomasseau, as da televisão, as do circo-teatro etc.

Pegando aquela diferenciação de conceitos, com relação ao circo-teatro vocês procuram, sim, me parece, fazer um pastiche, um tanto grosseiro, é verdade, uma vez que a estetização proposta pela encenação é algo talvez inviável economicamente para as companhias populares (e pobres!) de circo.

Em última análise, vocês rendem uma grande e linda homenagem clownesca tanto ao melodrama em si quanto ao circo-teatro. E o riso é fácil. E o riso é saboroso. Não conseguimos segurar as gargalhadas diante dos shows dos atores com as músicas românticas/bregas Endless Love, de Lionel Richie e Diana Ross; Temporal de amor, de Leandro & Leonardo; Total Eclipse do Amor, de Wilson & Soraia. Todos merecedores de aplausos em cena aberta. Os atores estão muito bem afinados e sintonizados. O elenco todo está de parabéns! 

Vale menção o primoroso figurino de Marcondes Lima. Também o figurino faz uma leitura das figuras clownescas do circo-teatro. Um trabalho minucioso de um dos mais brilhantes artistas da cidade. Boa parte dos atores, inclusive o encenador, foi aluno de Marcondes. Não é à toa que a encenação lembra, em muitos dos aspectos estilísticos, o humor característico do mestre.

A montagem é excelente! Que a Trupe não se sinta culpada com o riso fácil nem com o intelectualismo. O trabalho de vocês propõe o riso fácil e muito mais. Propõe o melodrama e muito mais. Propõe o circo-teatro e muito mais. Propõe o popular e muito mais.

Assumam o riso!  Porque, querendo ou não, nós rimos à beça, por razões as mais diversas. Deixemos de lado a culpa cristã do riso ou o superego platônico para o mesmo. O espetáculo é lindo e divertido. E ponto final.         

*     *     *

A IV Mostra Capiba de Teatro chega ao seu final com sucesso absoluto. Foram, ao todo, 8 espetáculos escolhidos com muito critério. Todas as montagens revelaram uma pesquisa séria da linguagem teatral, discutindo propostas e tendências para o teatro em nossa cidade.

Coincidentemente, muitos dos artistas envolvidos nesses espetáculos são provenientes da Universidade, do curso de Licenciatura em Artes Cênicas. Isso mostra que está acabando aquele fosso que separava ideologicamente os artistas da cidade dos intelectuais da academia. A crítica ao academicismo e à intelectualidade não faz mais sentido nos dias de hoje. Boa parte dos professores do curso de Artes Cênicas é de artistas; boa parte dos artistas-pesquisadores que despontam na cidade provém da Universidade. Esse diálogo tem-se mostrado proveitoso e só vem a somar à produção artística local.

Está de parabéns Breno Fittipaldi, supervisor de Cultura do Sesc Casa Amarela, e toda sua equipe. Tudo ocorreu satisfatória e maravilhosamente bem. A organização dos detalhes, desde o belíssimo programa da mostra (criação de Alberto Saulo) ao suporte técnico do teatro, merece aqui especial louvor.

Aguardemos, pois, ansiosos, a V Mostra Capiba de Teatro!

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Sobre o Crítico...

Bruno Siqueira
Doutor em Literatura Dramática e professor do curso de Artes Cênicas da UFPE. É crítico teatral, tendo participado como colaborador efetivo do Portal TeatroPE nos anos de 2007 e 2008. Colaborou com o Diário de Pernambuco, com a publicação de alguns textos de crítica teatral. Tem artigos críticos publicados em revistas e livros acadêmicos.

2 comentários:

  1. Bruno vc arrasou e o sesc mais uma vez vem acertando.... valeu Breno!

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  2. Que bom Paulinho, a luta é grande e o maior prazer é quando o público gosta, assim sei que valeu à pena. Abração pra ti.

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