domingo, 5 de dezembro de 2010

That´s excelente besteirol dramático

Por Wellington Júnior

Compreender a estrutura do cômico é entrar em sua topografia simbólica. O terreno da comicidade sempre esteve ligado aos espaços do inferior, do não-sério. Tudo isso aconteceu por que se acreditava que rir não tinha uma função de elevação, um sentido profundo, um significado. Esse fantasma da inutilidade perseguiu durante um longo tempo o teatro de besteirol.

O Besteirol foi um termo cunhado para uma turma de dramaturgos cariocas formada principalmente por Miguel Falabella, Mauro Rasi e Vicente Pereira. Esses autores revolucionaram o terreno da dramaturgia cômica brasileira, trazendo um riso jovem, sem medo, um nonsense. Não necessitavam de uma função maior neste riso devastador. Essa dramaturgia teve seu nascimento e auge nos anos 80 com importantes textos, tais como: As sereias da zona sul, Batalha de arroz num ringue para dois e As mil e uma encarnações de Pompeu Loredo.

A partir dos anos 90, esses autores transformaram suas escritas e surgiu então o que se chamou (através do dramaturgo e pesquisador Flavio Marinho) de Besteirol arrependido. Essa era a fase de um riso chistoso, mas que estava também atento aos espasmos interiores de suas personagens. O melhor exemplo desse momento foi o texto A partilha de Miguel Falabella, que fala sobre quatros irmãs e suas discussões sobre suas vidas diante da morte da mãe. Com essa peça, Miguel se tornou um dramaturgo ‘respeitado’, chegando a ser comparado a Tchecov.

Toda essa explicação anterior foi necessária para entendermos onde se situa a dramaturgia do espetáculo Solteira, casada, viúva, divorciada, que foi apresentado na IV Mostra Capiba de Teatro. Os textos de Noemi Marinho, Luiz Arthur Nunes e Maria Adelaide Amaral refletem sobre a condição feminina nestes quatro estados civis.

Somos inicialmente apresentados à atendente Wilma, uma solteirona que trabalha numa empresa de auto-ajuda. O texto de Noemi Marinho ri da solidão de uma mulher que só escuta os outros, até que um dia explode e fala das suas angústias. A automatização da personagem é responsável pela criação de cenas de puro nonsense. A tensão entre a situação absurda de vida da personagem Wilma e o seu sofrimento interior é um ponto fundamental no arcabouço dramatúrgico de Noemi Marinho, não só neste texto como também em sua importante obra Fulaninha e Dona Coisa.

O segundo texto é da grande dramaturga Maria Adelaide Amaral, que fala sobre a viuvez de Do Carmo, uma mulher que só descobre a traição do marido no velório do infame traidor. Nesta cena, Maria Adelaide se distancia de seu gênero principal, o drama. Neste texto, rimos dos comentários chistosos da personagem diante dos anúncios sexuais dos classificados. A autora busca tensionar esses comentários com a situação de perda/traição vivida pela protagonista. Podemos observar esse mecanismo de cômico de nonsense na teledramaturgia de Maria Adelaide para o remake da novela Ti ti ti.

Luiz Arthur Nunes constrói no terceiro esquete do espetáculo uma impressionante experimentação formal com o cômico. Contando a história de Celeste Aída - uma senhora casada que assassina o marido e todos do tribunal que está sendo julgada - Luiz Arthur elabora um impactante exercício de nonsense dialogar. É na tensão do diálogo absurdo com a trajetória libertária dessa personagem casada onde se situa seu foco narrativo. Luiz Arthur Nunes realizou uma importante parceria criatriva com Caio Fernando Abreu na escrita de A maldição do Vale Negro – uma farsa melodramática que dialoga muito com esse texto sobre o universo da mulher casada.

O último texto foi escrito por Regiane Antonini, autora dos sucessos Banheiro Feminino e Perfume de Madonna. Neste olhar sobre a divorciada, a autora apresenta a decadente vida de Katarina Fields, atriz e colecionadora de ex-maridos. Regiane une em contradição os comentários cômicos sobre o mundo televisivo com a solidão do estrelato. O universo pop e da cultura de massa sempre estão presentes na trajetória de escrita de Regiane Antonini.

Os quatro dramaturgos destacam em seus projetos dramatúrgicos um riso sem culpa (em jogo) presente nos elementos estruturais dos textos e um adensamento psicológico nos conteúdos das personagens, tensionando conteúdo e forma. Os autores conseguem um equilíbrio perfeito desse projeto em muitos momentos, mas em algumas passagens a balança pende mais para um só lado, o que acaba sufocando a ação proposta pelos textos.

A escrita de Luiz Arthur Nunes é a que melhor consegue esse equilíbrio, elaborando uma dramaturgia cômica que revela a alma humana num riso libertário. Além de aliar uma magnífica pesquisa formal com o diálogo.

Centrei principalmente minha discussão do espetáculo na estrutura dramatúrgica, por que acredito que o encenador Aluízio Guimarães opte claramente em montar sua escrita cênica na relação nua e crua entre texto e atriz, sendo o material dramatúrgico o grande impulsionador do trabalho atorial.

Maria Alves - a atriz que vive essas quatro mulheres - é uma das mais importantes atrizes do teatro pernambucano. Talvez sua maior marca seja a necessidade de estar sempre se impondo desafios e experimentações. Com esse espetáculo Maria exercita esse cômico dramático. O resultado é completamente diferente de seu trabalho em Dorotéia vai à guerra. Com Solteira, casada, viúva, divorciada, a atriz está plena em seu rigor e sua disciplina, sendo explosiva comicamente no momento certo e implosiva dramaticamente na hora exata. É um trabalho inesquecível de uma atriz apaixonada por sua profissão.

Vendo Solteira, casada, viúva, divorciada, pude perceber como o besteirol nunca morrerá, pois necessitamos deste riso chistoso, absurdo. Ele irá se transformando, ganhando novas feições, mas estará sempre encantando as pessoas com seu simples prazer de rir e de jogar como um ato libertário.

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Sobre o crítico...

Wellington Junior

Diretor e ator de teatro, foi Professor do curso Regular de Teatro Sesc Santo Amaro (2001-2005), dos cursos livres do Sesc Piedade (2001-2005). Participou da Curadoria do VIII Festival Recife de Teatro Nacional (2005); Seminário de Critica Teatral (2005,2006 e 2010). Colaborador durante os anos de 2007 e 2008 no Portal TeatroPE. Em 2006 e 2007 foi Coordenador Pedagógico do Festival Todos Verão Teatro, realizado pela Federação de Teatro de Pernambuco.


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